Por Grazielle Seabra
A ascensão do movimento Red Pill com sua retórica de reivindicação de
“verdades ocultas” sobre gênero não é um fenômeno descolado da realidade social. Ao
contrário: ele encontra solo fértil em desigualdades estruturais, traumas individuais e
carência de redes de apoio emocional. E, em muitos casos, age como catalisador de
comportamentos abusivos convertendo dor, frustração e vulnerabilidades em violência
contra mulheres. Para quem atua na área de segurança pública, direito ou justiça social, é
imprescindível enxergar o Red Pill não apenas como discurso ideológico, mas como um
fator de risco concreto no aumento da violência doméstica.
A cultura Red Pill e a normalização da dominação
O Red Pill propaga uma visão de mundo em que as relações de gênero são
entendidas como disputa de poder: o homem deve dominar, a mulher deve obedecer ou
será vista como ameaça. Contra isso, ele legitima controle, desconfiança e vigilância
constante. Essa narrativa institucionaliza a desumanização da mulher e normaliza
comportamentos de dominação como “justificados”.
Quando tais ideias se enraízam no íntimo, passam a moldar a forma como
muitos homens interpretam afetos, limites e conflitos. A mulher deixa de ser parceira;
torna-se “problema a ser controlado”. A vulnerabilidade deixa de ser vista como sinal de
humanidade e se transforma em fraqueza intolerável.
Masculinidade ferida: traumas, vulnerabilidades e o papel do Red Pill
Muitos homens atraídos por essa ideologia carregam feridas profundas:
rejeição afetiva, abandono, humilhação social, baixa autoestima, carência de afeto,
histórico de abusos, insucessos amorosos. Criados em uma cultura que proíbe o choro, a
fragilidade ou a busca por ajuda, esses homens acumulam dor sem expressão o que gera
uma enorme tensão emocional.
Nesse contexto, o movimento Red Pill surge como refúgio: oferece
explicações simplistas (“é culpa delas”), dá voz a ressentimentos, valida a raiva. A
desordem interior encontra um espelho “racional” no discurso de dominação. E, às vezes,
o espelho se quebra transformando-se em violência.
Casos recentes que ilustram o perigo real
Nos últimos anos, perfis associados à ideologia Red pill têm alcançado
alcances expressivos nas redes sociais, ampliando seu potencial de influência. Por
exemplo, o influenciador Thiago Schutz conhecido como “Calvo do Campari” acumula
mais de 450 mil seguidores nas redes sociais, segundo reportagens recentes. (CNN
Brasil)
Dados compilados por pesquisas sobre “masculinistas online” apontam que
os 11 canais mais expressivos desse segmento no Brasil reúnem, juntos, mais de 4
milhões de seguidores no YouTube, com mais de 1 bilhão de visualizações nos vídeos
publicados até 2024. (Tab UOL)
Esse alcance massivo demonstra que o movimento Red Pill não é um discurso
restrito a nichos invisíveis ao contrário, atinge um público amplo e diversificado,
ampliando o risco de normalização de ideias misóginas, desumanização e violência de
gênero.
Exemplos concretos demonstram que não estamos falando de teorias vazias
mas de agressões reais.
* Em novembro de 2025, o influenciador Thiago Schutz conhecido como
“Calvo do Campari” foi preso em flagrante por violência doméstica contra sua namorada.
Segundo boletim de ocorrência, foram registrados tapas, chutes, lesões e tentativa de
estupro. Um caso emblemático de como a retórica Red Pill pode se transformar em
agressão física. (Reddit)
* Em 2024, o país registrou 1.450 feminicídios, consolidando mais um ano
alarmante de mortes violentas de mulheres por sua condição de gênero. (Agência Brasil)
* Ainda em 2024, de acordo com levantamento nacional recente, a violência
sexual estupros, abusos atingiu um patamar crítico, reforçando que a violência de gênero
continua uma crise estrutural. (MP RS)
Esses números e episódios mostram que o problema não é isolado, tampouco
restrito a casos marginais há um vínculo concreto entre discursos de dominação de gênero
e a materialização da violência.
Esses dados demonstram que a violência contra a mulher permanece um
grave problema de segurança pública e que discursos ideológicos de dominação podem
agravar ainda mais essa crise.
Por que o Estado e a sociedade precisam reagir: prevenção, responsabilização e
educação
Para reduzir o impacto desse fenômeno, não basta apenas punir. É necessário:
Investir em políticas de prevenção e educação sobre masculinidade, gênero e relações
saudáveis, garantir acolhimento e suporte psicológico a homens com traumas afetivos
para que dialoguem com suas dores em vez de projetá-las, fortalecer mecanismos de
denúncia, proteção e investigação de violência doméstica e de gênero, promover
campanhas de informação e conscientização sobre o papel das ideologias tóxicas na
escalada da violência.
Como advogada e especialista em segurança pública, é meu dever alertar: o
combate à violência de gênero não se limita às prisões. Começa com educação, respeito
e responsabilidade social.
Da retórica à ação o papel da advocacia e da sociedade
O movimento Red Pill não é uma mera “moda de internet”. É uma retórica
que seduz vulnerabilidades emocionais, naturaliza a dominação e fornece justificativas
para atos violentos. Quando esse discurso encontra traumas não elaborados, o risco se
torna concreto.
Se homens feridos internalizarem esse discurso sem crítica, podem
transformar dor em agressão. Se a sociedade falhar em reagir, a violência doméstica
continuará crescendo com vítimas que, muitas vezes, não têm voz.
Por isso, defender a dignidade humana, a igualdade de gênero, o respeito e a
justiça social não é “obra de militância” é de responsabilidade institucional, jurídica e
ética. Precisamos denunciar com firmeza, educar com empatia, proteger com rigor. E,
sobretudo, não permitir que a dor de alguém justifique violência contra outrem.
Grazielle Seabra
Advogada especialista em Segurança Pública, membra da comissão de Segurança Pública da OAB-MA

















